Sobre Border de Laura Waddington

Guilherme Gontijo FloresColetivo Praxis, Brazil. 2018.

By Guilherme Gontijo Flores

Bordas, margens, fronteiras, essas são marcas e metáforas para qualquer grupo que se reúne e busca de definir, marcar fins em si, porque para isso ele precisa de diferenciar, ou mais precisamente, se antepor e distanciar de outro grupo, dos outros grupos que ele, por definição em negatividade, não é. As democracias, na medida mesmo em que se vinculam a estados, guardam sempre o problema de seus limites: até onde vai, ou pode ir sua abertura, quem pode passar a ser um cidadão, quais as regras de convívio e de hospitalidade com o estrangeiro que pede abrigo. Daí o lugar central dos refugiados que se deslocam para vários países da Europa, mas também para o Brasil, vindos de países vizinhos, como Venezuela, ou Bolívia, mas também de percursos mais longos, como Haiti, para ficarmos em poucos exemplos.

O filme Border (2004), da inglesa Laura Waddington, é o retrato da truculência no acolhimento, é a marca de que, mesmo em democracias supostamente fortes como a britânica, o modelo democrático tende a priorizar sua noção de estado-nação acima dos vínculos inacabados e intermináveis de uma partilha da Terra em que estamos. Da Terra que nos cabe. Por isso achei importante trazer aqui o filme e também o breve comentário do filósofo e crítico de arte francês Georges Didi-Huberman, num trecho que encerra seu belo livro A sobrevivência dos vagalumes (originalmente escrito em 2008), e que aqui vem logo depois do vídeo.

Ao que diz Didi-Huberman gostaria apenas de acrescentar um ponto. O filme é todo feito com imagens de um mundo quase noturno, entre lobo e cão, ou plenamente escuro, com fulgurações de pessoas muitas vezes ainda mais escuras, praticamente indistinguíveis em seus traços e trejeitos, sem podermos nunca saber ao certo se estamos de fato diante de refugiados, ou de outras pessoas que passam pelo espaço da câmera. Waddington em trabalho delicado nos convence, numa espécie de pacto ficcional e documentário (paradoxo apenas aparente, penso), de que os reconhecemos por sua (dela) voz, sua (dela) capacidade de partilha e empatia com eles (até segunda ordem um desdobramento de todos nós). Mas ela consegue levar isso além por fazer de seu gesto imagético um gesto de revolta, como pensa Camus acerca dos que dividem prisões, uma revolta desinteressada de si que reconhece uma injustiça sofrida por outrem, mesmo um possível adversário. Isso se desdobra ainda mais no uso da imagem, quase sempre em forte zoom, que ameaça borrar tudo, pessoas, carros, estradas. Penso que, no limite e num sonho, podemos nos permitir (e eu diria, deveríamos no exigir) o que se borra, o que pode se borrar, que é a própria noção de fronteira, margem, borda.

Excerto de “A sobrevivência dos vaga-lumes”

Não vivemos em apenas um mundo, mas entre dois mundos pelo menos. O primeiro está inundado de luz, o segundo atravessado por lampejos. No centro da luz, como nos querem fazer acreditar, agitam-se aqueles que chamamos hoje – por uma cruel e hollywoodiana antifrase – alguns poucos people, ou seja, as stars ~ as estrelas, que, como se sabe, levam nomes de divindades – sobre as quais regurgitamos informações na maior parte inúteis. Poeira nos olhos que faz sistema com a glória eficaz do “reino” : ela nos pede uma única coisa que é aclamá-la unanimemente. Mas, nas margens, isto é, através de um território infinitamente mais extenso, caminham inúmeros povos sobre os quais sabemos muito pouco, logo, para os quais uma contrainformação parece sempre mais necessária. Povos-vaga-lumes, quando se retiram na noite, buscam como podem sua liberdade de movimento, fogem dos projetores do “reino”, fazem o impossível para afirmar seus desejos, emitir seus próprios lampejos e dirigi-los a outros. Penso novamente, de repente – será aqui um último exemplo, haveria muitos outros a convocar – em algumas imagens frágeis surgidas na noite do campo de Sangatte, em 2002, e filmadas por Laura Waddington sob o título de Border.

Laura Waddington passou vários meses nas periferias do campo da Cruz-Vermelha em Sangatte. Ela filmava os refugiados afegãos ou iraquianos que tentavam desesperada mente escapar da polícia e atravessar o túnel sob o canal da Mancha a fim de chegar à Inglaterra. Ela pode, disso tudo, extrair apenas imagens-vaga-lumes: imagens no limiar do desaparecimento, sempre movidas pela urgência da fuga, sempre próximas daqueles que, para realizar seu projeto, se escondiam na noite e tentavam o impossível, correndo risco de vida. A “força diagonal” desse filme se dá em detrimento da claridade, certamente: necessidade de um material leve, obturador aberto ao máximo, imagens impuras, focalização difícil, grão invasor, ritmo sincopado produzindo algo como um efeito de lentidão. Imagens do medo. Imagens-lampejo, entretanto. Vemos pouca coisa, trechos somente: corpos recostados no acostamento de uma autoestrada, seres que atravessam a noite em direção a um improvável horizonte. Apesar da escuridão reinante, não são corpos tornados invisíveis, mas sim “parcelas de humanidade” que o filme conseguiu justamente fazer aparecerem, por mais frágeis e breves que sejam suas aparições.

O que aparece nesses corpos da fuga não é mais do que a obstinação de um projeto, o caráter indestrutível de um desejo. O que aparece é também a graça, às vezes: graça que contém todo desejo que toma forma. Belezas gratuitas e inesperadas, como quando esse refugiado curdo dança na noite, ao vento, tendo seu cobertor como única vestimenta: este é o ornamento de sua dignidade e, de certa forma, de sua alegria fundamental, sua alegria apesar de tudo (Figura 2). Border é um filme ilegal atravessado, de fato, por todos os estados da luz. Por um lado, há esses lampejos na noite: infinitamente preciosos, pois portadores de liberdade, mas também angustiantes, pois sempre submetidos a um perigo palpável. Por outro lado – como na situação descrita por Pasolini em 1941 -, vemos os “ferozes projetores” do reino, se não for da glória: feixes de luz das tochas da polícia no campo, implacável raio de luz que varre, de um helicóptero, as trevas. Mesmo as simples luzes das casas, os lampadários ou os faróis dos automóveis que passam na estrada nos apertam a garganta no contraste dilacerante – visualmente dilacerante – que se instaura com toda essa humanidade lançada na noite, rejeitada na fuga.

Os contrastes nos estados da luz alternam-se com um forte contraste sonoro em que dois estados da voz conferem à narrativa de Laura Waddington toda sua sutileza dialética, a despeito da extrema simplicidade de suas escolhas formais. De um lado, é a voz da própria artista: voz de uma mulher muito jovem, musical embora sem efeitos, de uma extraor dinária ternura. Ela cumpre modestamente as exigências do testemunho: ela nos diz sua história e seus limites intrínsecos; ela não julga nada, não domina nada daquilo que conta; ela se dirige a seres singulares, encontrados, nomeados com precisão (Omar, Abdullah, Mohamed), sem que seja omitida a perspectiva assustadora de todo o fenômeno (sessenta mil refugiados aproximadamente terão passado por Sangatte, conforme fomos informados). Quando nós, espectadores do filme, somos às vezes ofuscados por um plano superexposto, Laura Waddington nos diz como os próprios refugiados voltavam ao campo cegos pelos gases lacrimogêneos.

De repente, no meio dessa narrativa e de sua voz – que não dèixa de evocar o lamento lírico que recitava a poetisa Forough Farrokhzad em acompanhamento ao seu implacável documentário sobre um leprosário iraniano, intitulado La maison est noire [A casa é negra] -, explode uma sequência gravada em som direto e filmada do interior de uma manifestação dos refugiados contra o iminente fechamento do campo. Então, não são mais lampejos, mas explosões, flashes; não são mais palavras, mas urros em pura perda. A própria câmera manifesta-se e se debate. A imagem é toda maltratada, posta em perigo: ela tenta, a cada plano, salvar a si mesma. Mais tarde o silêncio se reinstalará. Veremos um grupo de refugiados – mas não podemos dizer “refugiados”, devemos dizer ainda “fugitivos” -, guiados por um passador, afastarem-se nas trevas em direção a um horizonte vagamente luminoso. Seu objetivo está ali, além, atrás daquela linha. Mesmo sabendo que esse ali nem sempre lhes será um refúgio. Eles acabam por se confundir com a escuridão da mata e a linha do horizonte. Os faróis surgem mais uma vez. O filme termina com algo como uma parada sobre o ofuscamento.

Imagens, portanto, para organizar nosso pessimismo. Imagens para protestar contra a glória do reino e seus feixes de luz crua. Os vaga-lumes desapareceram? Certamente não. Alguns estão bem perto de nós, eles nos roçam na escuridão; outros partiram para além do horizonte, tentando reformar em outro lugar sua comunidade, sua minoria, seu desejo partilhado. Aqui mesmo as imagens de Laura Waddington permanecem, assim como os nomes – nos créditos do final – de todos aqueles que ela encontrou. Pode-se ver novamente o filme, podemos dá-lo a ver, fazer circular alguns trechos, que suscitarão outros: imagens-vaga-lumes.

Georges Didi-Huberman, excerto de A sobrevivência dos vaga-lumes, trad. Vera Casa Nova e Márcia Arbex. Belo Horizonte: UFMG, 2011, pp. 155-160

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Sobre “Border” de Laura Waddington, Guilherme Gontijo Flores, Coletivopraxis.com.br, 2018